Artes

Ana Adelaide escreve último texto do Ano e homenageia a Obra de Zé Palhano


31/12/2018

Imagem reprodução / Artista plástico Zé Palhano



A escritora e professora universitária Ana Adelaide Peixoto publicou nas suas redes sociais, nesta segunda-feira (31), um texto, in memorian, a Zé Palhano, artista plástico que faleceu no último dia 26 de junho de 2018.

 

Em texto bastante emocionado, Ana relembrou momentos da vida do artista.

 

Confira na íntegra:

 

Objetos Sólidos

Para Zé Palhano, In Memoriam
Feliz Ano Novo!

 

“Lixo para uns, ouro para outros. “Objetos Sólidos” acompanha uma jornada de ressignificação de valores. Os jovens John e Charles andam juntos em uma praia, discutindo temas importantes relativos ao governo inglês. John é um jovem candidato ao parlamento.

Um encontro inesperado com um objeto muda o rumo de sua história, fazendo-o refletir sobre o que é o sucesso e o que é o valor das coisas. John encontra um pedaço de vidro e por um momento retoma a curiosidade de criança que se pergunta a história daquela peça: dá a ela uma história – seria a joia de uma princesa ou o adorno de uma baú do tesouro?

A partir daquele momento John passa a procurar, cada vez mais intensamente, peças perdidas que também apresentem a qualidade única que vira naquele pedaço de vidro verde, até que essa busca se transforma em sua única atividade. John negligência suas ambições anteriores, passa a ser mal visto nos círculos políticos e, por fim, até mesmo Charles, seu amigo e confidente, vai embora e o deixa com sua peculiar coleção.”

Esse é um resumo do conto “Solid Objects”, de Virginia Woolf. Woolf como sempre fazendo da banalidade da vida e das coisas, um mergulho à profundidade dessa mesma banalidade e/ou da vida.

E foi lembrando desse conto que vivi de novo, por esses dias, uma experiência rica e dolorida, que é remexer em caixas e baús. Inda mais de outras pessoas. E principalmente quando essas já partiram.

Já fiz isso uma vez quando uma amiga se mudou e fomos revirar suas correspondências. E eu, acumuladora, tudo que via de mim para ela, carregava de volta, numa tentativa inútil de reter o tempo.

Em outra tarde inesperada, recebi uma caixa de cartas e afins de amigo que se foi de repente, e lá estava eu, re-lendo aquele tempo incrustado no papel e tinta, hábito que sempre soube ter – escrever cartas, mas agora descubro que era inda maior. Escrevia e escrevia!

Quando Juca se foi, tive que invadir suas caixas, seus segredos, fotos, correspondências. Pedindo licença, entre lágrimas e todos os sentimentos antagônicos, paradoxais e humanos que temos. Rasgar coisas alheias é difícil. Não nos pertence.

Ontem tive outra experiência dessas, na casa de um amigo querido, que partiu há alguns meses.

Re-visitar sua casa foi constrangedor, para dizer o mínimo. Ele , um ermitão convicto. Um marceneiro. Um escultor. Um colecionar de coisas.

Sua casa era linda. Toda cheia de arte popular, de coisinhas de todos os cantos, e claro, enfeitada também com presentinhos dos amigos. Inclusive meus. Um espaço de arte e aconchego. E beleza.

Fomos tentar fazer um testamento/inventário das pequenas coisas, e distribuir com amigos mais próximos. Um boneco aqui, um artesanato acolá, um pratinho, uma vela, um artefato indígena, um souvenir da vida….e assim o fizemos. Em parte.

Recebo das mãos de sua irmã, um envelope cheinho de cartas, cartões e crônicas minhas digitadas.

Trouxe pra casa, como quem toca algo sagrado. E lá estavam conversas de 35 anos atrás: minha gravidez de Lucas, meu filho mais velho; dos amigos; da amizade; do afeto; mudanças de endereços e vidas; notícias da cidade. O tempo e seu rodopio e me vi lá nos anos 80! Respirei e como num passe de mágica voltei ao espaço vazio , ou nem tanto assim, da casa de Zé Palhano.

Acho que Zé, assim como o personagem de Woolf, quando encontrava um objeto, se encantava e revalidava os percursos, seus anseios e conflitos. E contemplava-o. Posto nas estantes, nas janelas, ou recantos, aquele objeto quem sabe lhe abduzia, para alhures, ou para dentro.

Acho que no seu caso, mais para dentro de si. Um mergulho de re-significações. De diálogos com outros objetos e consigo mesmo. Uma viagem!

Sua oficina, cheia de pregos, papel de bananeira, martelos, canecas, e coisas que tinha importância grande para ele e seu trabalho, mas que, para nós, completamente obsoletos. Até uma garrafa de Vinho Celeste estava ali. De repente foi até eu que trouxe de Fortaleza uma vez. Um néctar não bebido! Mas ali, figurando sobre todas as naturezas e culturas mortas.

Um outro significado para o espaço. O espaço do vazio. Do abandono – Zé se foi de repente. E entrar em contato com sua casa des-figurada, na companhia da sua irmã Ana Lydia e da amiga, Ana Gondim, foi decerto triste.

Até então, tinha uma esperança longínqua de que, qualquer dia desses fosse receber um telefonema seu, para papearmos sobre a vida.

Nesse dia, com tudo tão fora do lugar, acho que tomei tento e assimilei sua partida. É real! E seu aniversário de nascimento será dia 06/01. Dia de Reis.

Mas neste dia seis, estarei aqui com essas lembranças e mimos da sua vida, que trouxe para acompanhar os meus próprios objetos que, se não são sólidos, se desmancham no ar. Na nova morada. Zé veio comigo.

Acho que vou re-ler o conto de Virginia, que se não como Proust, também imaginou as suas Madeleines. Ou cacos de vidro, com histórias reais ou inventadas.



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